Roger Machado desabafa e acredita que é perseguido por suas opiniões políticas: "O futebol me deixou mais branco"

Técnico planeja interromper carreira, garante que o Grêmio subirá para a Série A e explica por que prefere um brasileiro como substituto de Tite


Fonte: globoesporte.globo.com

Roger Machado desabafa e acredita que é perseguido por suas opiniões políticas: O futebol me deixou mais branco
Roger Machado, aos 47 anos, é um homem decidido a combater o silêncio. Suas posições políticas são transparentes, sobretudo na luta antirracista, causa em que se tornou uma das principais vozes no futebol brasileiro – o mesmo que, segundo ele, o deixou mais branco ao aceitá-lo.



Mas o técnico do Grêmio sente que paga um preço por, como ele mesmo diz, "não pactuar". E identifica essa reação na amplificação das críticas que recebe.

Em quase duas horas de conversa em uma sala do CT do Grêmio, na semana passada, Roger falou sobre política e racismo, contou que planeja uma pausa na carreira, garantiu que seu time subirá para a Série A e explicou por que prefere um brasileiro como substituto de Tite na Seleção.

Confira os principais trechos abaixo.

Para um treinador que busca um time que jogue bem, que jogue bonito, existe felicidade na Série B?

É um caminho possível, sim. A Série B pode se moldar à característica de tipos de jogo diferentes: jogo mais bonito, mais prático, de velocidade, de transição, de bola aérea. A gente pode falar da plasticidade do jogo, do jogar bonito. O que é a definição do jogo bonito? É sair lá de trás a toques e fazer um gol sem que o adversário toque na bola? Ou é fazer uma transição em dez segundos e chegar ao gol adversário vencendo linhas em um jogo de profundidade? Precisa primeiro encontrar essa definição do que é o jogo bonito.

Para você, o que é?

Durante um período, ter a bola, controlar o jogo pela posse, para mim foi a única beleza possível. Depois, passei a entender que por vezes controlar a bola não significa controlar o jogo, tampouco o adversário. Em alguns momentos, ter o controle do espaço e induzir quem tem a bola a fazer determinado jogo também tem uma beleza. Hoje, me considero um treinador mais completo porque consegui vivenciar os dois estilos, me sinto capaz de fazê-los em momentos distintos, de acordo com o material, com a característica humana que a gente tem à disposição.

É legal ser treinador?

É ótimo. Melhor do que ser jogador.

É mesmo? Por quê?

Eu gosto da estratégia. Gosto do futebol como paixão nacional, mas tenho adoração pelo futebol como esporte de alto rendimento, como estratégia de batalha campal. É como se fossem dois exércitos, cada um com sua estratégia. A bola é a bandeira que tu precisa fincar no território do adversário, como se fosse uma morte simbólica. Assim como na batalha campal, a gente tem os ataques aéreos e os ataques terrestres. Essa beleza... Eu posso pegar a granada, tirar o pino e jogar de mão em mão, até chegar ao território do adversário. Mas também posso pegar essa granada, jogar por cima, e ela pode surtir o mesmo efeito. O treinador de futebol tem cinco capacidades que moldam seu trabalho: a gestão do campo, que é o treino, o trabalho do campo; a gestão de vestiário, que é gerir o grupo de jogadores e o staff; a gestão de jogo, os 90 minutos, que tem também a gestão de intervalo, uma gestão bem importante; e gestão de ambiente, que é a torcida, a imprensa, a questão política do clube. Se tu tem a estrelinha nessas capacidades, isso te credencia a estar em alto nível.

Dessas cinco valências, qual a tua especialidade?

Tenho muito prazer em fazer a gestão do campo. Tenho muito prazer em fazer a gestão do vestiário. Tenho bastante capacidade de fazer a do jogo e a do vestiário. Aquela em que eu mais deposito energia é a gestão do ambiente. É uma variável muito protagonista do espetáculo, que não está diretamente no dia a dia, mas se a gente não fizer uma boa gestão dela, pode atrapalhar.

No seu começo de carreira no Grêmio, você foi treinado pelo Felipão. Nos últimos anos de Grêmio, foi treinado pelo Tite. Estamos falando do último treinador campeão do mundo pelo Brasil e do próximo treinador a tentar ser campeão do mundo pelo Brasil. Com qual deles você se acha mais parecido?

Acho que tenho um pouco de cada. Fui treinado por 33. Passaram 33 profissionais na minha vida. Eu aprendi com todos: com alguns, como se fazer a coisa certa; com outros, como não se fazer. E talvez o maior aprendizado tenha sido de como não se fazer. Talvez se eu tivesse trabalhado com o Felipão só lá no início, eu não tivesse absorvido tudo que ele tinha para me ensinar. Naquele período, com 19, 20 anos, eu só queria sobreviver naquele ambiente. Depois, fui convocado para a Copa América de 2001, e era o Felipão de novo. Aí, sim, retroagi tudo, aprendi tudo que precisava do ponto de vista do campo e absorvi tudo da questão de gestão dele, da Família Scolari.

E com o Tite?

Com o Tite, estava em outro momento, tinha quase 30 anos, uma vivência de quase 15 anos como jogador de futebol. O Tite foi o cara que talvez tenha percebido minha vocação ou pelo menos meu interesse em me tornar treinador. Ele foi o primeiro cara que me deu um programa, que na época chamava Tática 3D. Era em disquete ainda. Ele me deu e disse: “Toma, que isso vai ser teu futuro. Tem computador? Bota na concentração”. Lembro que a gente fez um jogo de Campeonato Brasileiro, ele montou uma equipe já fazendo algumas observações para o jogo da Libertadores. No Campeonato Brasileiro, aconteceu, funcionou, e na Libertadores não funcionou, a gente acabou mudando no meio do jogo. A gente venceu. De madrugada, saí andando pelo corredor do hotel e, quando vi, trombei com ele. Ele disse: “Que tu tá fazendo acordado?”. Eu disse: “Pensando no jogo”. E ele: “Eu também não consegui dormir. Qual foi tua dúvida?”. E aí nós quase falamos juntos: “Por que funcionou no Brasileiro e a gente teve dificuldade na Libertadores? Vamos sentar ali, vamos tentar entender”.

O que você faz, fora do futebol, para chegar com a cabeça boa no trabalho?

Atividade física. E uso muito a leitura. Para ler, entender o que está ali, você precisa desligar de algumas coisas. O futebol te consome o dia inteiro. Não dá, não tem condição de viver o futebol 24 horas. Às vezes, as pessoas não entendem. “Ah, o jogador de futebol está em uma festa”. Mas ele precisa ir também. O que tu faz numa sexta-feira, quando tu teve uma má semana no teu trabalho? Tu não chama três amigos e diz “cara, preciso dar uma espairecida, vamos tomar um negócio no bar, ver gente”? Por que a gente não pode?

Quando a gente joga no sábado e depois só no outro domingo, dá um ou dois dias de folga, eu digo: “Rapaziada, não quero ninguém em casa. Tá cansado? Sai cansado. Hoje é dia de quem gosta de dormir tarde, dormir tarde; quem gosta de tomar uma cervejinha, tomar uma cerveja; quem gosta de ajoelhar para orar, ajoelhar até mais tarde. Mas hoje esqueçam o futebol. Segunda-feira a gente volta a falar de futebol”.

O que você está lendo agora?

Eu leio uns dez livros por vez. No momento, estou lendo três biografias: do Mandela, do Martin Luther King e do Obama. Junto com isso, tem os assuntos que me interessam. Sobre racismo, leio muito. Estou lendo agora o livro “A Fragilidade Branca”. E os livros de futebol, que estou abrindo sempre, para pegar coisas de treino. Uns sete, pelo menos, estou lendo, empilhadinhos na cabeceira da cama, alguns no escritório. De manhã, como os treinos têm sido à tarde, pelo menos por uma hora e meia, duas horas, eu sento e dou uma lida.

Você tem o hábito de dar livros para os jogadores?

Sim. Quando tu lê um livro, é uma janela que se abre para o mundo. Cada janela é uma parte diferente do mundo. Ultimamente, tenho presenteado com os livros da coleção, do projeto (do qual é um dos idealizadores) Diálogos da Diáspora. Eles reagem bem. Às vezes, leem sobre a questão da autoestima, do foco, da psicologia do jogo associada ao rendimento. Primeiro, vou conhecendo o atleta, entendendo o que pode ser interessante, pelo que ele pode se atrair mais. Também não adianta presentear se não for uma leitura agradável para aquela pessoa, de interesse para ela.

Alguém fez isso por você no passado?

Sim, minha irmã mais velha. Sou o caçula de sete irmãos. Ela foi a primeira a ter formação universitária, como professora de português e francês. Eu adolescente, começando as viagens pelo Grêmio, ela botava um livro embaixo das minhas coisas. Quando eu voltava, “Lena, tu colocou um livro nas minhas coisas? Eu não tenho o hábito de ler”. Ela dizia: “Vai que atrasa, vai que não tem nada para fazer. Tu pega o livro”. E um dia aconteceu. Era um livro agradável. Eu li e comecei a cultivar o hábito da leitura. É o gosto, mas é transformar em hábito. Quero poder construir isso em outros. Ler me deixou muito mais crítico sobre a vida, sobre tudo.

A leitura foi o caminho para tua postura em algumas causas, especialmente a antirracista?

Não, foi minha família, os Machado. Eles sempre atuaram politicamente, seja pela música, seja pelo futebol, seja pelo carnaval. Hoje, talvez os quilombos modernos sejam as escolas de samba, como lugares de resistência da cultura negra. E minha família sempre esteve presente nisso tudo. Sou o caçula, o mais mimado, o que era protegido pelos mais velhos. Por parte de pai, teve a música. Meu pai tocava tudo que era instrumento de corda. De parte de mãe, foi o futebol. A música não veio nos meus irmãos, mas fiz questão que minhas filhas estudassem música.

A escritora e artista Grada Kilomba tem uma explicação sobre como se estrutura o racismo. Segundo ela, ele parte da diferenciação. A partir daí, como há uma diferenciação, cria-se uma hierarquia. E a partir da hierarquia, vem uma relação de poder. Você percebe essa estrutura no futebol?

O futebol é um microcosmo do que somos como sociedade. No futebol, muitas vezes isso é amplificado. Ele tanto amplifica quanto cristaliza, o que permite que a gente enxergue até com um pouco mais de facilidade.

Inventaram o racismo para poder explorar. Tu cria o racismo e depois cria as regras para exercer o poder.
Tu discrimina, mas precisa estar apoiado em vários elementos da sociedade, tanto na pseudociência quanto na esfera social. Foram quase 400 anos de escravidão. O racismo à brasileira, silencioso, é diferente do que aconteceu nos Estados Unidos ou na África do Sul, com o apartheid. Ele se mistura até hoje, assume tecnologias bem modernas para continuar privilegiando nos lugares de poder apenas um grupo.

Eu não consigo entender como um país que foi criado ética e moralmente em cima da escravidão de indivíduos, e que até hoje não conversou devidamente sobre o tema, possa acreditar que isso está resolvido. Muitos acreditam que discutir gera mais discriminação. Até agora, não se discutiu e não se resolveu nada. Atribui-se muitas vezes o desequilíbrio social, a desigualdade entre brancos e negros no Brasil, a uma questão econômica. Silenciar, para mim, é confirmar. Não é resolver.

Você integra algum movimento organizado nesse debate sobre questões raciais? Ou suas iniciativas são mais individuais?

Estou formalizando uma instituição para poder direcionar investimentos para diferentes causas sociais. O projeto Diálogos da Diáspora é nesse sentido. Ele começou com uma conversa entre mim e outro pai da escola. Ele disse: “Roger, depois do advento das cotas, temos uma vasta produção de material acadêmico riquíssimo, e não há interesse em publicação. Se a gente conseguisse criar um projeto para dar visibilidade a esses trabalhos, seria muito legal”. Então foi criado esse projeto, que visa publicar livros de diversas áreas do conhecimento, de dentro e fora da academia, para dar voz a quem nunca teve.

Voltando à pergunta anterior: quando falo que o futebol se traduz como microcosmo, talvez o campo seja o espaço mais democrático de todos. No campo, a gente tem 50% de brancos e 50% de negros. Só que quando o campo acaba para ambos, nessa estrutura social do futebol, a gente olha para o topo da pirâmide e vê que os filtros começam a aparecer. Isso sempre me chamou a atenção e passou a me incomodar depois que virei treinador. Naquele espaço, muitas vezes era só eu que estava ali. Não tinha essa mesma proporção de representatividade que o campo dava.

Isso, para mim, mostra que temos um filtro, e esse filtro é a cor.
Por que hoje se fala mais sobre racismo? Foi a sociedade que evoluiu?

Não, isso aí foi em cima de muita luta. Não foi bondade do homem que a mulher tenha conseguido espaço. Foi muita luta do movimento feminista, das mulheres em geral. Assim como foi com muita luta do movimento negro na conquista, por exemplo, das cotas. Nos últimos 30 anos, houve um avanço em direitos sociais que permitiu que aqueles até então reprimidos pelo poder do sistema, junto de uma coletividade, tivessem voz para se posicionar com um pouco mais de veemência. À medida que os direitos foram conquistados, tudo que está acontecendo no mundo, não só no Brasil, é um processo de tentativa de resistência do outro lado. É uma resistência, pelo status quo, de relação de poder de um grupo sobre outro. Esse retrocesso a gente deve combater, lutar para não voltar. Não somos todos iguais. Somos diferentes. Mas precisamos respeitar a diferença e conviver bem.

Silenciar seria mais prático para a sua carreira?

Sem dúvida. Mais do que silenciar, talvez pactuar, fazer parte do poder eminente.

Me tornar jogador de futebol me deixou mais branco. Fui aceito com mais naturalidade para circular em ambientes diferentes, pela força do esporte. O sistema, por vezes, se adapta, permite que alguém passe pela fresta da porta, justamente para validar o discurso da falta de oportunidades.
Isso me gera problemas outros. Por vezes, a crítica exacerbada está amplificada pelas minhas posições.

Mas eu não nasci jogador de futebol. Sou cidadão antes. Tenho o direito de me manifestar sobre os assuntos que me tocam, que eu acredito poder falar. Eu tenho certeza de que o sistema revida. Eu busco muitas vezes ser mais inteligente. É uma adaptação de sobrevivência nesse lugar.

Você se considera um homem de esquerda?

Depende do espectro. Esquerda e direita são um espectro muito grande. Eu sou um homem de esquerda, sim, mas não acredito no socialismo, tampouco no comunismo.

Isso em um ambiente em que a maioria não é de esquerda, certo? Ou é impressão minha?

Não cheguei a fazer essa conta ainda (risos). Eu não acredito no estado único. Acredito que quem gera emprego, quem empreende, quem deposita seu capital intelectual tem o direito de ter uma fatia maior do processo. Mas não acredito na exploração dessa mão de obra. Não acredito em um Estado que comande todo o processo, mas também não acredito em um país que tenha 500 empresas estatais. Não sou tão liberal ao ponto de não ter o Estado atuando em lugares determinantes. Não acredito que ter soberania nacional é ter apenas um Exército forte para garantir tuas fronteiras. No mundo em que a gente vive, se não tiver um sistema financeiro forte, um sistema de tecnologia, de capacidade de gerar energia, tu também vai ficar dependente do capital externo. Não sei se nesse ambiente em que vivo todo mundo ou a maior parte pensa diferente. Mas faço futebol com minha ética de vida. Acredito que se as oportunidades fossem dadas de forma igualitária à grande maioria, aí, sim, a gente poderia medir as pessoas pelo mérito. Do jeito como estamos estratificados como sociedade, não tem como medir pelo mérito.

Nos últimos anos, o Brasil teve um aumento no calor do debate político. Amigos de afastaram, famílias se distanciaram. Você viu isso acontecer em vestiários também? Você já presenciou algo nesse sentido?

Já. Mas nada que prejudicasse a convivência. Sensivelmente, o vestiário foi se modificando ao longo do tempo. A gente percebe que tipo de posicionamento e postura determinado atleta tem. Mas a forma como as relações são criadas dentro do vestiário, de cumplicidade na dificuldade, de toda a formação de um grupo, faz com que os atletas tenham uma ligação muito forte. Por vezes, essa polaridade que a gente vê lá fora é mais diluída. Embora tenhamos pensamentos diferentes, a gente sabe aonde quer chegar. Isso não aparece tanto no vestiário.

Você tem desejo de seguir um caminho político tradicional, em um sentido partidário?

Nenhum. Na verdade, já passei da metade do caminho da minha vida esportiva. Daqui a um período, vou dar uma parada. Quero muito voltar para a academia, fazer outra formação. Ou fazer Ciências Sociais, ou Psicologia Social, ou Direito. Acho que a contribuição que posso dar é a partir do lugar onde estou. Não me sinto capacitado para trabalhar politicamente como candidato.

Essa parada será daqui a quanto tempo?

Eu tinha dado um prazo de 50 (anos). Não para parar em definitivo, mas para engatar uns dois anos de formação que me obrigasse a não querer desperdiçar o que eu fiz. Mas não sei. Posso repensar isso, porque minhas filhas estão crescendo. O que me motivava a dar uma interrupção era poder ficar com elas. Uma já está morando fora, a outra já está dizendo que a próxima é ela. Acho que vou esticar mais um pouquinho, e depois dou uma parada. Mas anseio muito por esse momento.



Grêmio, 2022, Roger Machado

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